Sob o signo do inconformismo e da militância
A história da neta de escravos, Laudelina Campos Mello, que bateu de frente com políticos poderosos, infernizou a elite racista de toda uma cidade e eternizou seu nome como o grande ícone da luta das empregadas domésticas.
Embora os ocorridos em Montgomery, no primeiro dia de dezembro de 1955, sejam um marco da história da luta pela igualdade racial, poucos lembram com exatidão o que aconteceu na cidade do estado do Alabama, Estados Unidos. Porém, as dúvidas que envolvem a fatídica manhã de verão tornam-se quase nulas quando o nome Rosa Parks é lembrado. Batizada como Rosa Louise McCauley, a costureira nascida em Tugeskee fez história ao negar ceder seu lugar em um ônibus para que um homem branco sentasse. O ato pioneiro de insubordinação contra o apartheid levou Rosa à cadeia, mas serviu de estopim para a criação do Movimento dos Direitos Civis dos afro-descendentes norte-americanos. O que muita gente também não sabe é que enquanto, nos EUA, Rosa Parks eternizava seu nome entre as notáveis negras da história; no Brasil, ainda na década de 1950, uma outra negra de extremo senso de justiça e inquietação, semelhante ao da estadunidense, passava por cima de qualquer obstáculo e infernizava políticos e elitistas preconceituosos. Seu nome, Laudelina Campos de Mello, que veio ao mundo em 12 outubro de 1904, na cidade de Poços de Caldas, Minas Gerais. Fruto da união de uma escrava doméstica e um lenhador, ela nasceu livre devido a Leia Áurea. Se no papel a situação parecia confortável para os negros, a realidade era
Aprendendo a lutar
A relação escravocrata ainda se fazia presente e desde muito cedo a pequena garota sentiu o gosto do racismo, pois vivia agarrada à mãe, Dona Sidônia, serviçal de uma renomada família da cidade. "A sinhá teve uma filha surda e que não andava. Então a minha mãe tinha que pajear a menina. Ela carregava pra dar banho, dava comida na boca. Na hora que ela tinha acesso (crise), ela jogava prato na minha mãe.
Minha mãe não podia falar nada, tinha que ficar quieta, aceitar, agradar". Os vexames e ofensas que a sua mãe recebia da patroa não eram as únicas manifestações de preconceito sofridas por sua família. Na escola, quando provocada por colegas brancas, a espevitada Laudelina não pensava duas vezes antes de revidar aos xingamentos racistas
Diferentemente de sua família que aceitava com resignação as humilhações constantes. Se por um lado, seus familiares mantinham um comportamento respeitoso diante da costumeira opressão, a falante menina deixava transparecer a personalidade forte que marcara sua trajetória. Em 1914, com apenas 10 anos de idade, ela pulo no pescoço e quase sufocou o capataz que, a mando da sinhazinha, tentara, em vão, aplicar chibatas na Dona Sidônia. "A minha mãe dizia para mim que eu deveria ter nascido homem, porque eu já nasci com aquela garra, com aquela coisa que tudo para mim eu não deixava passar, queria enfrentar".
Tempos idos, tempos difícies
A morte do pai Marco Aurélio, no ano de 1917, dificultou a vida dos Campos de Mello e Laudelina foi obrigada a abandonar os estudos na terceira série do primário para se dedicar à profissão de empregada doméstica. A rotina de trabalhadora somada à missão de cuidar dos irmãos menores não impediram que seu senso de liderança se manifestasse. Assim, aos 16 anos, obteve seu primeiro cargo administrativo: a presidência de um clube para jovens, algo até então raríssimo para uma mulher na década de 20, ainda mais negra. Próxima da maioridade, Laudelina conheceu o pedreiro Henrique Geremias por quem se apaixonou e passou a se encontrar secretamente, mas teve o relacionamento impedido por sua mãe.
Carioca radicado em Santos, Henrique deixou Poços assim que a construção do hotel que trabalhara foi concluída. Entristecida com o fim do namoro, Laudelina, empregada de Julia Kubtischek, mãe do jovem político que em algumas décadas iria mudar a história do país, mudou-se para São Paulo com a patroa. Na capital paulista, o destino fez com que a jovem doméstica cruzasse novamente o caminho de Henrique, com quem casou-se em Santos, logo após o término da Revolução de 1924. Depois de uma breve estada no litoral, Laudelina regressou a São Paulo, onde, no dia 13 de maio de 1925, concebeu Alaor.
Entre sonhos e trincheiras
A vida de mãe e dona de casa seguia calma até a Revolução Constitucionalista de 1932, quando oligarquias puseram em prática o plano de dar fim à ditadura imposta por Getúlio Vargas. Presságios anunciavam que São Paulo seria palco de um conflito armado, e às pressas, os Campos de Mello fugiram para Santos. Na volta à cidade portuária, Laudelina e seu marido ingressaram em Saudades de Campinas, associação de caráter cultural e um dos tentáculos da Frente Negra Brasileira (FNB), uma das maiores entidades não governamentais do movimento negro nacional. "Eu era oradora e vice-presidente. O meu marido era o secretário. A fundação foi criada assim que terminou a revolução. Nessa época, eu participava da Associação só por lazer e cultura. Era um espaço do negro, já que os brancos eram muito racistas e não queriam se misturar." Em 1936, a Frente encontrava-se dividida pela incompatibilidade política de seus membros. Entre os descontentes com os novos rumos da FNB estavam os professores Geraldo Campos de Oliveira e Vicente Lobato. Também insatisfeita com as mudanças, Laudelina uniu-se à dupla e deixou transparecer seu grande sonho: incluir as empregadas domésticas no ramo sindical, assim garantindo-lhes direitos trabalhistas. Laudelina via a precariedade das condições de trabalho dessas mulheres e dos preconceitos reinantes, que ela percebia como resíduos da escravidão.
Fonte: Roniel Felipe/ Revista Raça
Nenhum comentário:
Postar um comentário