A medicina organizada há tempos reflete uma obsessão bem americana: a questão racial. Por mais de um século, a Associação Americana de Medicina tem sido o maior e mais poderoso grupo de médicos do país -– e um grupo esmagadoramente branco. Os médicos negros têm seu próprio grupo, menos conhecido, a Associação Nacional de Medicina.
No dia 10 de julho, as atenções se concentraram brevemente nessa segregação. A AAM se dirigiu diretamente à ANM, coisa rara, para comunicar uma mensagem ainda mais rara: uma desculpa aos médicos negros do país, mencionando um século de “erros passados”.
Que erros, exatamente? W. Montague Cobb poderia ter respondido a essa pergunta detalhadamente.
Cobb (médico, antropólogo físico, ativista dos direitos civis, presidente da Associação Nacional de Medicina nos anos de 1960) sabia que a organização devia sua própria formação às barreiras raciais. Ela foi fundada em 1895 depois que a AAM se recusou a aceitar três delegados afro-americanos em suas reuniões anuais de 1870 e 1872.
Ele também sabia que pacientes e médicos negros eram freqüentemente transferidos para divisões obscuras de caridade ou para “gente de cor”, ou mesmo completamente banidos dos hospitais. Eles responderam a isso com seus próprios hospitais e escolas de medicina, pelo menos sete delas existiam em 1909.
Naquele ano, a AAM encarregou um educador bastante conhecido, Abraham Flexner, de visitar e avaliar todas as escolas de medicina norte-americanas. Seu relatório divulgado em 1910, “A Educação Médica nos Estados Unidos e no Canadá”, levantou obstáculos maiores para médicos negros: ele recomendava que todas as escolas de medicina de negros (com exceção de duas, Howard e Meharry) fossem fechadas. Sem conseguir atrair financiamento, as outras realmente fecharam, e o número de médicos negros diminuiu, como previsto.
Em 1938, a situação se tornou tão horrível que Louis T. Wright, do Harlem Hospital, declarou: “A AAM demonstrou tanto interesse na saúde dos negros quanto Hitler em relação à saúde dos judeus”.
Em 1963, quando Cobb se tornou presidente da ANM, os Estados Unidos tinham 5.000 médicos negros, de um total de 227.027 médicos. Apesar de a afiliação à AAM ser importante para a prática hospitalar, treinamento em especialidades e conquistas profissionais, muitos capítulos e “sociedades constituintes” – grupos médicos que eram os “porteiros” da organização maior – estavam fechados para negros.
E a AAM sistematicamente se recusou a forçar suas sociedades constituintes a admitir negros. Em 1952, Martha Mendell, profissional branca membro do Fórum dos Médicos, um grupo de médicos multirracial em Nova York, afirmou: “O argumento da AAM de que não tem poder para corrigir essa prática por causa da ‘autonomia’ de suas sociedades constituintes é uma fuga da sua responsabilidade. Com certeza, se as sociedades médicas do sul decidirem admitir quiropráticos na associação, a AAM rapidamente encontraria uma forma de redefinir sua autonomia”.
Ainda assim, um punhado de médicos negros influentes conseguiu ter acesso à AAM. Sem dúvida encorajado por esse fato, em 1957 Cobb fundou a Imhotep National Conference on Hospital Integration para forjar uma coalizão entre as associações médicas.
A AAM se juntou à iniciativa Imhotep com entusiasmo. Mas seis anos depois, Cobb afirmou amargamente que a associação freqüentemente estava ausente nas reuniões da Imhotep. E mais, os dois grupos médicos cada vez mais tomavam lados opostos nas importantes batalhas contra a discriminação. Enquanto a Associação Nacional de Medicina fazia campanha para o Medicare e o Medicaid em nome dos pacientes de seus membros, em sua maioria negra, geralmente pobre, Dr. Edward R. Annis da AAM censurou ambos os programas como “medicina socializada”.
Sem o apoio da AAM, médicos negros como Hubert A. Eaton, de Wilmington, Carolina do Norte, recorreu a processos legais federais para obter acesso a hospitais de brancos.
E apesar de promessas de discursos oposicionistas sobre regras da construção do hospital Hill-Burton validando instalações “separadas, porém iguais”, a resposta da AAM foi no mínimo sem propósito.
A paciência de Cobb estava no fim, e talvez suas mãos tenham tremido levemente – de indignação, não de cansaço – quando deu uma resposta, em agosto de 1963: “Durante sete anos os convidamos para sentar conosco e resolver o problema. O alto nível profissional e econômico dessas organizações e os princípios altruístas e religiosos sobre os quais elas deveriam operar não significaram nada. Com sua recusa em conversar, eles forçam uma ação emergencial. E agora os eventos passam longe deles. A iniciativa oferecida já não é mais deles, eles não podem mais aceitar”.
A declaração de Cobb foi visionária, pois os médicos negros e seus simpatizantes brancos ganharam suas batalhas de direitos civis. A lei dos direitos civis de 1964 foi aprovada sem o apoio ativo da AAM. O último artigo da lei tapou a brecha do caso Hill-Burton: a segregação dentro de hospitais se tornou ilegal. O Medicare foi aprovado em 1965.
No entanto, para afro-americanos e outros médicos anti-segregacionistas, ainda permaneceu um bastião da exclusão racial a ser conquistado: a AAM. Para isso, esses médicos recorreram às mesmas estratégias que haviam acabado com a segregação em escolas, refeitórios e subúrbios monocromáticos.
Em 19 de junho de 1963, a associação realizou sua 112ª convenção anual no grandioso Traymore Hotel em Atlantic City. Enquanto Annis descia do púlpito do salão de baile, depois de proferir um discurso presidencial, ficou surpreso de encontrar nas escadas John L.S. Holloman, membro afro-americano da AAM de New York City, que lhe entregou uma carta exigindo que a AAM eliminasse todas as barreiras raciais para sua afiliação.
Quando ficou claro que Annis não tinha nenhuma intenção de ler ou responder à carta diante dos médicos reunidos, Holloman virou as costas e deixou o salão para se juntar aos 20 médicos negros e brancos que protestavam do lado de fora. Repórteres se amontoaram junto aos membros da AAM durante toda a convenção, clamando por saber por que os médicos protestavam do lado de fora, acusando a organização de ser racista.
Essas cenas de manifestação pública continuaram até 1968, quando a AAM finalmente alterou sua constituição e estatutos para punir a discriminação racial, permitindo a expulsão de sociedades constituintes.
Relações mais amenas se seguiram entre as sociedades médicas, e apesar de um esforço em 1973 para uni-las ter falhado, elas realmente formaram uma ligação duradoura, com a qual W. Montague Cobb sempre sonhara. Os esforços conjuntos mais frutíferos incluem a criação, em 1992, da Associação de Assuntos Minoritários, e em 2004 a Comissão para o Fim das Disparidades na Assistência Médica. Em 1994, Lonnie Bristow se tornou o primeiro presidente afro-americano da AAM.
Mesmo assim, lembranças dessa história de rancor ainda persistem e o pedido de desculpas da AAM continua sendo pertinente, apesar de atrasado. Considere essa estatística: em 1910, quando Abraham Flexner publicou seu relatório sobre a educação médica, os médicos afro-americanos representavam 2,5% do total de médicos nos Estados Unidos. Hoje, eles são 2,2%.
* Harriet A. Washington é autora do livro “Medical Apartheid: The Dark History of Medical Experimentation on Black Americans from Colonial Times to the Present” (Doubleday, 2007).
No dia 10 de julho, as atenções se concentraram brevemente nessa segregação. A AAM se dirigiu diretamente à ANM, coisa rara, para comunicar uma mensagem ainda mais rara: uma desculpa aos médicos negros do país, mencionando um século de “erros passados”.
Que erros, exatamente? W. Montague Cobb poderia ter respondido a essa pergunta detalhadamente.
Cobb (médico, antropólogo físico, ativista dos direitos civis, presidente da Associação Nacional de Medicina nos anos de 1960) sabia que a organização devia sua própria formação às barreiras raciais. Ela foi fundada em 1895 depois que a AAM se recusou a aceitar três delegados afro-americanos em suas reuniões anuais de 1870 e 1872.
Ele também sabia que pacientes e médicos negros eram freqüentemente transferidos para divisões obscuras de caridade ou para “gente de cor”, ou mesmo completamente banidos dos hospitais. Eles responderam a isso com seus próprios hospitais e escolas de medicina, pelo menos sete delas existiam em 1909.
Naquele ano, a AAM encarregou um educador bastante conhecido, Abraham Flexner, de visitar e avaliar todas as escolas de medicina norte-americanas. Seu relatório divulgado em 1910, “A Educação Médica nos Estados Unidos e no Canadá”, levantou obstáculos maiores para médicos negros: ele recomendava que todas as escolas de medicina de negros (com exceção de duas, Howard e Meharry) fossem fechadas. Sem conseguir atrair financiamento, as outras realmente fecharam, e o número de médicos negros diminuiu, como previsto.
Em 1938, a situação se tornou tão horrível que Louis T. Wright, do Harlem Hospital, declarou: “A AAM demonstrou tanto interesse na saúde dos negros quanto Hitler em relação à saúde dos judeus”.
Em 1963, quando Cobb se tornou presidente da ANM, os Estados Unidos tinham 5.000 médicos negros, de um total de 227.027 médicos. Apesar de a afiliação à AAM ser importante para a prática hospitalar, treinamento em especialidades e conquistas profissionais, muitos capítulos e “sociedades constituintes” – grupos médicos que eram os “porteiros” da organização maior – estavam fechados para negros.
E a AAM sistematicamente se recusou a forçar suas sociedades constituintes a admitir negros. Em 1952, Martha Mendell, profissional branca membro do Fórum dos Médicos, um grupo de médicos multirracial em Nova York, afirmou: “O argumento da AAM de que não tem poder para corrigir essa prática por causa da ‘autonomia’ de suas sociedades constituintes é uma fuga da sua responsabilidade. Com certeza, se as sociedades médicas do sul decidirem admitir quiropráticos na associação, a AAM rapidamente encontraria uma forma de redefinir sua autonomia”.
Ainda assim, um punhado de médicos negros influentes conseguiu ter acesso à AAM. Sem dúvida encorajado por esse fato, em 1957 Cobb fundou a Imhotep National Conference on Hospital Integration para forjar uma coalizão entre as associações médicas.
A AAM se juntou à iniciativa Imhotep com entusiasmo. Mas seis anos depois, Cobb afirmou amargamente que a associação freqüentemente estava ausente nas reuniões da Imhotep. E mais, os dois grupos médicos cada vez mais tomavam lados opostos nas importantes batalhas contra a discriminação. Enquanto a Associação Nacional de Medicina fazia campanha para o Medicare e o Medicaid em nome dos pacientes de seus membros, em sua maioria negra, geralmente pobre, Dr. Edward R. Annis da AAM censurou ambos os programas como “medicina socializada”.
Sem o apoio da AAM, médicos negros como Hubert A. Eaton, de Wilmington, Carolina do Norte, recorreu a processos legais federais para obter acesso a hospitais de brancos.
E apesar de promessas de discursos oposicionistas sobre regras da construção do hospital Hill-Burton validando instalações “separadas, porém iguais”, a resposta da AAM foi no mínimo sem propósito.
A paciência de Cobb estava no fim, e talvez suas mãos tenham tremido levemente – de indignação, não de cansaço – quando deu uma resposta, em agosto de 1963: “Durante sete anos os convidamos para sentar conosco e resolver o problema. O alto nível profissional e econômico dessas organizações e os princípios altruístas e religiosos sobre os quais elas deveriam operar não significaram nada. Com sua recusa em conversar, eles forçam uma ação emergencial. E agora os eventos passam longe deles. A iniciativa oferecida já não é mais deles, eles não podem mais aceitar”.
A declaração de Cobb foi visionária, pois os médicos negros e seus simpatizantes brancos ganharam suas batalhas de direitos civis. A lei dos direitos civis de 1964 foi aprovada sem o apoio ativo da AAM. O último artigo da lei tapou a brecha do caso Hill-Burton: a segregação dentro de hospitais se tornou ilegal. O Medicare foi aprovado em 1965.
No entanto, para afro-americanos e outros médicos anti-segregacionistas, ainda permaneceu um bastião da exclusão racial a ser conquistado: a AAM. Para isso, esses médicos recorreram às mesmas estratégias que haviam acabado com a segregação em escolas, refeitórios e subúrbios monocromáticos.
Em 19 de junho de 1963, a associação realizou sua 112ª convenção anual no grandioso Traymore Hotel em Atlantic City. Enquanto Annis descia do púlpito do salão de baile, depois de proferir um discurso presidencial, ficou surpreso de encontrar nas escadas John L.S. Holloman, membro afro-americano da AAM de New York City, que lhe entregou uma carta exigindo que a AAM eliminasse todas as barreiras raciais para sua afiliação.
Quando ficou claro que Annis não tinha nenhuma intenção de ler ou responder à carta diante dos médicos reunidos, Holloman virou as costas e deixou o salão para se juntar aos 20 médicos negros e brancos que protestavam do lado de fora. Repórteres se amontoaram junto aos membros da AAM durante toda a convenção, clamando por saber por que os médicos protestavam do lado de fora, acusando a organização de ser racista.
Essas cenas de manifestação pública continuaram até 1968, quando a AAM finalmente alterou sua constituição e estatutos para punir a discriminação racial, permitindo a expulsão de sociedades constituintes.
Relações mais amenas se seguiram entre as sociedades médicas, e apesar de um esforço em 1973 para uni-las ter falhado, elas realmente formaram uma ligação duradoura, com a qual W. Montague Cobb sempre sonhara. Os esforços conjuntos mais frutíferos incluem a criação, em 1992, da Associação de Assuntos Minoritários, e em 2004 a Comissão para o Fim das Disparidades na Assistência Médica. Em 1994, Lonnie Bristow se tornou o primeiro presidente afro-americano da AAM.
Mesmo assim, lembranças dessa história de rancor ainda persistem e o pedido de desculpas da AAM continua sendo pertinente, apesar de atrasado. Considere essa estatística: em 1910, quando Abraham Flexner publicou seu relatório sobre a educação médica, os médicos afro-americanos representavam 2,5% do total de médicos nos Estados Unidos. Hoje, eles são 2,2%.
* Harriet A. Washington é autora do livro “Medical Apartheid: The Dark History of Medical Experimentation on Black Americans from Colonial Times to the Present” (Doubleday, 2007).
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