Revoltas de escravos em momento algum tiveram grande sucesso no Brasil. Isso se deve ao fato de que os negros nas senzalas eram advindos de grupos étnicos, lingüísticos e religiosos diversos. No início do século XIX, contudo, um grupo se tornou extremamente forte e coeso na Bahia: o dos negros das nações Nagô e Hauçá, do norte da África. Muçulmanos, com experiência em guerras tribais e extremamente cultos (dominando inclusive a escrita em língua árabe), esses negros são chamados genericamente de malês e promoveram uma verdadeira guerra religiosa em Salvador em 1835.
"No começo, os portugueses usavam a estratégia de capturar negros de diversos lugares da África. Na senzala, cada negro tinha sua própria língua e cultura. Assim, os escravos não tinham como se comunicar nem formar uma coesão dentro de seu grupo social. Mas depois, os ingleses passaram a fiscalizar os mares para combater o tráfico negreiro, de modo que não era mais possível escolher tanto os cativos. A partir de então, os traficantes de escravos tiveram que trazer negros de um único ponto, o norte da África, onde a fiscalização não era tão forte. A vinda de tantos africanos de um único lugar, com uma mesma fé, uma mesma cultura e uma mesma língua, permitiu a islamização das senzalas de Salvador", explica Jean Marcel Carvalho França, professor de História do Brasil na Unesp (Universidade Estadual Paulista) - Franca.
Pois é, vindos de antigos reinos islâmicos, os guerreiros malês não aceitavam a imposição da fé católica, o trabalho forçado e os castigos físicos. É verdade que nenhum escravo gosta de ser escravo, mas, no caso dos malês, a revolta com sua condição tinha um ingrediente extra, a religião. O Corão é claro na condenação à opressão e no estímulo à guerra contra aqueles que não aceitam a fé em Alá.
Os negros malês que sabiam ler, pouco a pouco, foram se articulando para deflagrar no momento exato a Jihad (guerra santa islâmica) na Bahia. Para tal tarefa, além de se unirem, os malês buscaram converter outros escravos à religião de Maomé. A destruição de uma mesquita e a prisão de alguns líderes religiosos em 1834 foram o estopim. "Os muçulmanos precisavam agir logo, fazer algo que evitasse uma crise de confiança na causa que representavam e uma debandada geral de adeptos recém-conquistados", conta o historiador João José Reis, uma das maiores autoridades no assunto, em seu livro "Rebelião escrava no Brasil" (Companhia das Letras, 2003). Detalhes da investida que estava sendo planejada só eram conhecidos por um grupo seleto; à massa só era pedido que estivesse preparada, que aguardasse o sinal. Com cartas e bilhetes em árabe, ininteligível para os brancos que mal sabiam ler o português, os malês combinaram matar os brancos e mulatos (que seriam, na visão dos malês, impuros e traidores), banir o catolicismo e fundar uma monarquia islâmica na Bahia.
Por muito tempo a revolta dos malês foi entendida como uma luta de classes, mas a bem da verdade é que a luta não era simplesmente uma luta de escravos contra senhores. A participação de negros libertos, marcante e fundamental para o planejamento da revolta, além da intenção de escravizar os pretos não malês após a instalação da nova ordem, mostram que a rebelião de janeiro de 1835 foi uma Jihad (guerra santa muçulmana) e não uma tentativa de revolução social.
O dia escolhido para o levante foi o dia 25 de janeiro de 1835 - as bases começaram a ser avisadas nos dias 23 e 24. Os meses de planejamento foram por água abaixo por obra da negra alforriada Guilhermina Rosa de Souza, que contou o que sabia a seu antigo senhor branco, por quem tinha afeição e a quem queria livrar do massacre. Guilhermina também avisou um vizinho branco que, por sua vez, alertou o juiz de paz.
Assim, as autoridades baianas tomaram conhecimento na noite do dia 24 e tomaram medidas repressivas, na tentativa de interceptar os malês antes da eclosão da onda de violência. O levante foi antecipado, porém, sem a mesma força que teria se tudo tivesse ocorrido conforme o planejado. Houve um ataque à delegacia, libertação de cativos, assassinatos e muito terror durante várias horas em Salvador e em diversas cidades do recôncavo.
No raiar do dia, entretanto, os mais de 1.500 revoltosos muçulmanos que carregavam símbolos islâmicos e papéis com trechos do Corão (aos quais atribuíam a propriedade de lhes dar força e invencibilidade) estavam presos, mortos ou encurralados na Praça do Teatro (hoje Praça Castro Alves). A revolta foi sufocada.
Em torno de 70 negros morreram nos combates, 500 foram deportados de volta para a África, alguns foram condenados à morte, outros às gales perpétuas e todos à tortura (o que matou mais um punhado).
O levante fracassou, mas serviu para demonstrar a força dos escravos. Os que foram levados de volta à África puderam gozar da liberdade, com sua fé em sua terra. Os que morreram, terminaram seus dias confiantes de que estavam se tornando mártires e que rumariam direto para o Paraíso. Se não lograram êxito nesta vida, tinham a convicção de que na outra estariam por cima de seus algozes.
Texto retirado do www.jornaldopovo.com.br, colunista LEANDRO CRUZ 17/10/2008
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