Pelo perfil do trabalho da cantora gaúcha Giamarê, ela poderia ter estabelecido um intercâmbio efetivo com Salvador e outras cidades que têm forte herança africana. Poderia, mas como afirma a cantora, 46 anos, há uma espécie de “isolamento” histórico que embotou a força da presença e as manifestações negras de cidades como Pelotas (RS), onde ela vive e atua. Com 16 anos de carreira, Giamarê se apresenta pela primeira vez em Salvador amanhã, (04/05/2008) às 20h, na Caixa Cultural, acompanhada do grupo Odara.
O espetáculo, batizado de Giamarê, Odara – Tambores do Sul, faz uma costura entre música, dança e poesia. “Faço um trabalho de valorização da cultura negra, que está relacionado com a resistência que ela teve aqui em Pelotas”, afirmou Giamarê, em conversa por telefone. A cidade, localizada a 250km de Porto Alegre, tem uma população afrodescendente bastante expressiva, e historicamente sediou organizações políticas e culturais que reportam ao período da escravidão. Em 1907, por exemplo, foi criado por lá o pioneiro jornal negro A alvorada.
No cruzamento de várias experiências, a cantora diz que faz uma música influenciada por várias sonoridades, como de artistas cariocas, baianos e mineiros, mas com elementos que são exclusivamente de sua região. A principal “particularidade” está na utilização do sopapo, um tambor de origem africana, construído com tronco de madeira e pele de animais, que fecundou no sul do país. O instrumento, inicialmente utilizado em cerimônias religiosas, foi absorvido no Carnaval local, tendo desaparecido por volta da década de 1950.
“O sopapo tem uma sonoridade muito grave e bonita”, afirma Giamarê. Ela é uma das artistas que estão tentando resgatar a utilização do tambor, que hoje é confeccionado exclusivamente pelo mestre Baptista, também natural de Pelotas, e que acompanha o grupo ministrando oficinas. No show, são três percussionistas utilizando o sopapo (Rafael Marques, Renato Popó e Fidel Ribeiro). A banda completa é formada pelo baixista Eduardo Simões, o violonista Cardo Peixoto e as backings Patrícia Ferreira e Lúcia Costa.
O repertório da apresentação é baseado no disco Um canto pá ocê, lançado ano passado e único registro fonográfico de Giamarê. Ela explica que a sonoridade do CD é a mesma que mostrará na apresentação, marcada pela percussão. No trabalho, gravou apenas compositores gaúchos, nomes como o compositor Giba-Giba (Lugarejo e Um canto pá ocê), Cardo Peixoto (A paz que a gente tem, Nego e O pranto e a flor), Vitor Ramil (Não é céu) e Ana Mascarenhas (Mãe das águas), entre outros. Também registrou Nikaiedo e Siahamba, respectivamente do cancioneiro popular moçambicano e sul-africano.
Vale ressaltar que Vitor Ramil é o único artista branco que participa do projeto. “Ele tem um trabalho de valorização da cultura negra”, justifica Giamarê. Durante a apresentação, serão lidos poemas do importante poeta gaúcho Oliveira Silveira. Um deles, Quilombo, inspirou uma das coreografias do Grupo Odara que permeiam o roteiro de cerca de uma hora e 30 minutos. O grupo, uma ONG de Pelotas que atua na divulgação da cultura e história de origem africana, trará oito integrantes, seis dançarinas e dois percussionistas.
Com uma equipe total de 23 pessoas, o projeto foi selecionado no edital da Caixa Cultural 2007 e também será levado ao Rio de Janeiro (dias 20 e 21 de maio). “Fico com um nó na garganta só em falar em me apresentar em Salvador. Para mim, este é um momento único, não tenho como mensurar”, afirma a artista, emocionada. Giamarê comemora a pequena turnê, pois diz que tem plena consciência das dificuldades de divulgação de trabalhos alternativos e engajados como o seu. “É um grande disparate o que acontece, mas agora estou vendo novas possibilidades e oportunidade para intercâmbios e para voltarmos a nos olhar”, acredita.
Giamarê iniciou carreira no teatro e integrou elenco de várias peças e musicais, até que decidiu pela carreira musical, no final dos anos de 1980. Trabalhou com o compositor e instrumentista gaúcho Giba-Giba – divulgador do sopapo e ícone da negritude do RS – e com a cantora Zezé Mota, no Rio de Janeiro, onde residiu por oito anos.
Nasce um instrumento
Além do show, o projeto Tambores do Sul promove uma oficina de construção do sopapo, hoje e amanhã, das 13h às 17h, ministrada pelo mestre Baptista, um dos poucos fabricantes desse tipo de tambor. Ele foi escolhido pelo Ministério da Cultura como mestre Griô, no programa federal que incentiva a transmissão de conhecimento dos mestres da cultura popular. Pela manhã, das 9h às 12h, é a vez da professora Raquel Silveira, que faz palestra sobre a cultura afro rio-grandense.
Fonte: Folha da Bahia
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