Não é possível iniciar, hoje, uma discussão sobre educação popular em favelas e periferias sem mencionar a luta do povo negro contra a lógica colonizadora, que lhes foi historicamente imposta. Tal lógica, pautada na racialização das relações, e tendo como premissa fundamental a inferiorização do outro, o não europeu, à condição de não-humano, gerou campos de tensionamentos nos quais o povo negro, num processo incessante, construiu estratégias de lutas intergeracionais.
Muitos foram os movimentos de lutas silenciados na nossa História. Porém, em 1993, foi criado, na Baixada Fluminense (periferia do Rio de Janeiro), o Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC). Esse movimento social de educação popular surge a partir da constatação de que no Brasil o processo de discriminação racial se consolidava não só simbolicamente, mas estatisticamente, a partir de um perverso processo de exclusão, em que o acesso e a permanência na escola aparecem como fatores substanciais.
A luta do PVNC, visando a combater essa realidade, pautou-se numa agenda que incluía não só o treinamento para o vestibular ou o simples reforço na escolarização, mas, principalmente, o reposicionamento do povo negro na sociedade brasileira, através do acesso a universidade.
Não só isso, mas também reivindicar uma universidade que garantisse uma permanente formação política, que os preparassem para as lutas posteriores, mais ampliadas, numa sociedade que não cessa em discriminá-los. É nesse sentido, que entendo o PVNC como uma continuidade dos processos de lutas, que tem atravessado gerações e se consubstancializado através de várias políticas de ação afirmativa, entre as quais, o surgimento do sistema de Cotas nas Universidades públicas, conquistado a partir da luta do Movimento Negro, e, sobretudo, a Lei 10.639. Em 1994, o PVNC atinge outras dimensões e se ramifica em vários núcleos, entre os quais, o núcleo Rocinha, que traz no seu bojo toda uma expectativa por ser o quinto núcleo do PVNC e o primeiro na zona sul do Rio de Janeiro, situado em uma das maiores favelas da América Latina.
Esse espraiamento trouxe, a reboque, muitas disputas políticas, natural nos processos de consolidação e crescimento dos movimentos sociais de cunho popular. Durante os primeiros anos de atividade do núcleo Rocinha, foi possível perceber como a dinâmica do cotidiano de um pré-vestibular envolve alunos, professores e coordenação em um dos objetivos considerado comum a todos, que é o caso da preparação para a realização das provas do vestibular. No entanto, as assembléias gerais, que reúnem todos os núcleos do PVNC, bem como as reuniões internas de cada pré com a participação de todos os seus integrantes, transformam esses fóruns do movimento em arenas de disputa política e ideológica, e repercute no trabalho de politização de alunos, professores e coordenação, o que é considerado um dos diferenciais que influenciam a prática pedagógica dos pré-vestibulares populares.
A especificidade das práticas dos sujeitos participantes dos diferentes núcleos com a percepção diferenciada de suas ações de intervenção foi fundamental, enquanto movimento social, no processo que levou o núcleo-Rocinha do Pré-vestibular para Negros e Carentes a se desligar deste movimento e a constituir o Pré-vestibular Comunitário da Rocinha (PVCR), em 1999.
O PVCR não abandona, com isso, a concepção de movimento social que o move, mas, a partir desse momento, adota uma intervenção social que altera a sua postura político-ideológica na intenção de atender às especificidades da favela da Rocinha.
Após a ruptura com o PVNC, a coordenação, os professores e os alunos do agora, PVCR, fazem a opção por outra linha política, passando a incorporar ao discurso do movimento uma outra perspectiva de luta. Pois para esse grupo, oriundo, em sua maioria, da própria favela ou das adjacências, outras discussões seriam necessárias para estabelecer uma marca identitária local ao movimento. No entanto, é bom ressaltar que o PVCR só chegou a este grau de politização ao passar por todo um processo de amadurecimento, que foi gestado no ventre das estruturas de organização do PVNC. Neste sentido, uma das primeiras discussões que emerge entre os integrantes do grupo do “pré-Rocinha” (alunos, professores e coordenadores) é a escolha de um novo nome. Isto remete, inclusive, a uma reflexão identitária que envolve a relação entre colaboradores (voluntários), público-alvo e a localização do “pré”, no espaço geográfico e social da Rocinha. O nome Pré-vestibular Comunitário da Rocinha (PVCR) tenta registrar a importância e significação dada ao caráter “comunitário” deste núcleo. Durante as discussões do grupo são apontados como princípios orientadores não somente as características fundantes, herdadas do PVNC, dentre elas a definição da discussão racial como um pilar de sustentação do movimento. É possível, também, indagar se essa concepção de comunidade não é um resquício da ideologia dos “Trabalhos Comunitários”, que permeou e marcou as ações políticas na Rocinha, na década de 80. O fato é que foram lançadas, no PVCR, a partir do que foi apreendido nos processos de lutas do povo negro dentro do PVNC, novas perspectivas, novas propostas (objetivos), idéias e orientações políticas voltadas para a especificidade da Rocinha, enquanto favela.
Assumindo-se, assim, outras ações no âmbito da educação popular, vislumbrando uma possível alteração na estrutura e nos projetos políticos da favela, a partir de outros tipos de intervenção dentro desta localidade. Fonte: www.afropress.com.br por Rodrigo Torquato da Silva
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