Um dos maiores incentivos ao consumo da cultura, na proposta de reformulação da Lei Rouanet pelo Ministério da Cultura, virá, segundo o ministro Juca Ferreira, da oferta para trabalhadores de um vale-cultura, a exemplo do vale-alimentação.
Lançada ontem (23/03), em entrevista coletiva, pelo ministro da Cultura, Juca Ferreira, a nova proposta de incentivo cultural, que reformula a Lei Rouanet e o sistema de financiamento à cultura do Brasil, já está disponibilizada ao público para sugestões no site do Ministério até o dia 6 de maio. Depois dessa data, o Ministério da Cultura, a partir das sugestões, vai elaborar, em conjunto com os ministérios da Fazenda e do Planejamento e a Casa Civil, um texto de um projeto de lei a ser votado pelo Congresso Nacional. Hoje, o principal mecanismo de financiamento ao setor cultural no Brasil é a Lei Rouanet, criada em 1991. O objetivo do Ministério, com essa nova proposta, é estimular o patrocínio a projetos culturais menores, de caráter regional e a preços mais acessíveis à maioria da população brasileira.
Segundo Juca Ferreira, que teceu duras críticas à falta de acesso da maioria da população à cultura, o projeto já conta com a simpatia da maioria dos congressistas. Criada há dezoito anos para o financiamento da cultura, a Lei Rouanet vem recebendo críticas sistemáticas de todos os setores culturais e inclusive do próprio Ministério, que, agora, aponta as distorções existentes na lei e propõe mudanças.
Concentração de recursos - Na entrevista, o ministro foi enfático ao criticar a concentração de recursos públicos nas mãos de poucos produtores culturais. Para ele, é inadmissível, diante dos pequenos índices de acesso à cultura pela grande maioria da população, que os recursos públicos direcionados ao financiamento de projetos culturais fiquem nas mãos de poucos, do que ele chama de "defeitos gravíssimos" do atual modelo. "A Lei Rouanet tem muitas qualidades, mas também tem defeitos gravíssimos na forma atual como se apresenta", disse. No ano passado, o Ministério da Cultura disponibilizou R$ 1 bilhão em recursos públicos e 50% desses recursos foram captados por apenas 3% dos proponentes. São aprovados cerca de 10 mil projetos por ano pela CNIC, em todas as áreas. Porém, apenas 20% desse total encontram empresas interessadas em apoiar os projetos, mesmo assim somente aqueles que dão retorno de imagem, segundo o ministro. "Isso não é justo. Isso não é política pública. Há uma dificuldade para explicar que o imposto arrecadado não beneficia o povo. Temos obrigação de refletir sobre esses números", sustentou ele.
De acordo com Juca Ferreira, apenas 14% da população brasileira freqüentam cinemas ao menos uma vez por mês; somente 8% freqüentam museus; e 93% nunca vão a exposições. Diante desses números, o ministro argumenta que o Ministério da Cultura não poderia continuar com uma lei que, no seu entendimento, está engessada e necessita de reformulação. "Chegou a hora de enfrentar o problema do financiamento", disse ele.
O financiamento é do Estado - Hoje, o patrocínio à cultura via Lei Rouanet é feito apenas pela renúncia fiscal. É exatamente esse aspecto que o ministro mais enfatiza como distorção da lei. Segundo sua exposição, nunca fica claro para a população que o dinheiro que está financiando este ou aquele projeto é exclusivamente dinheiro público, obtido pela renúncia fiscal. "Há uma falta de conhecimento da sociedade de que é o Estado quem patrocina a maioria dos espetáculos no Brasil. É preciso desmistificar a idéia de que é a empresa que financia projetos". Pela Lei Rouanet, a instituição privada que resolve financiar um projeto tem 100% de isenção fiscal. O ministro pergunta: "Quem aqui sabe que o Museu do Futebol foi criado com dinheiro público? Quem tem conhecimento que o Museu da Língua Portuguesa foi todo financiado com dinheiro público? Quase ninguém sabe disso, porque não é dito". Pelos dados apresentados, 90% das atividades culturais são pagas com dinheiro público, enquanto a iniciativa privada arca com somente 10% do total.
É nessa tecla que o Ministério quer insistir. Muitos projetos são aprovados por empresas para trabalharem a sua imagem junto ao público, o que faz com que projetos pequenos ou proponentes desconhecidos não sejam valorizados pelas empresas. Segundo o ministro, há uma discrepância enorme, pois atualmente o critério de aprovação do projeto fica nas mãos da empresa, ela é que decide o que será financiado. "A última palavra é da empresa e os interesses dela não são os mesmos do público. Na hora de financiar, 90% é dinheiro público, na hora da decisão/aprovação, 100% é do interesse privado", criticou o ministro.
O inusitado é que mesmo sendo dinheiro público, o Ministério, pelas regras atuais, não pode escolher que projetos seriam apoiados. Segundo Juca Ferreira, esse é um critério excludente e concentrador, pois o financiamento das empresas privadas a atividades culturais beneficia em sua maioria, grandes produções artísticas, além de concentrar-se nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. "Não há democratização que resista a isso, pois não abarca a diversidade cultural. Isso é dirigismo. Artistas novos e desconhecidos enfrentam dificuldades. E quem paga é a população", alertou Ferreira.
Mudanças de critérios - O Ministério da Cultura quer mudar esse critério, quer que seja uma ação compartilhada, com comitês gestores de cada área. De acordo com a proposta ministerial, as empresas não mais poderão escolher sozinhas que projetos desejam financiar. "Estamos propondo um modelo de gestão compartilhada, público, transparente e de livre acesso ao controle social", justificou Juca Ferreira, para explicar que esses critérios têm que ser aprovados pelo Conselho Nacional de Cultura, "sem dirigismos". "Não queremos disponibilizar dinheiro público para o enriquecimento de dois ou três produtores e nem queremos a apropriação de áreas da cultura em detrimento da grande maioria do povo brasileiro".
Na sua proposta, que já carrega o nome de Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (Profic), em substituição ao Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), o Ministério quer adotar faixas que podem variar, de acordo com o projeto, na renúncia de 60%, 70%, 80% ou 90%. Para o Ministério, o percentual de renúncia deverá obedecer à lógica de que quanto mais dinheiro público for destinado ao projeto, mais acesso deverá dar ao público. Ou seja, o grande beneficiário será a população, e não mais uma pequena parcela da sociedade. "Toda vez que tiver dinheiro público, tem que ter benefício público, ou não se justifica", argumentou o ministro.
Interesses públicos - A definição desses critérios ficaria não mais com o patrocinador, mas com os membros do Conselho Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (Conafic), órgão colegiado que substituiria a atual Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), que também vai verificar se o projeto atende a interesses públicos e terá preços acessíveis para a população. O ministro defende que, no futuro, até o ano de 2012, a proporção para o fomento seja de 50% de renúncia fiscal e 50% com recursos do Fundo Nacional de Cultural (FNC). Hoje, existem apenas duas faixas de isenção de Imposto de Renda para as empresas: 30% ou 100%.
O ministro argumentou que não há mais a ideologia do Estado mínimo nas questões da cultura, de transferir a responsabilidade para a área privada. "Não é mais assim, é uma fantasia pensar que o Estado é superável, isso é uma ingenuidade. É fundamental compreender que o Estado tem responsabilidade e coparticipação. Em qualquer lugar do mundo, o Estado é responsável e deve estar presente. Hoje, o Brasil está maduro para enfrentar as distorções". Para Juca Ferreira, não se justifica que o país, com a diversidade étnica e cultural que possui, deixe parcelas da população fora dos incentivos culturais.
O MInistério defende ainda que o FNC seja a principal forma de financiamento, com cinco novos fundos setoriais: Artes; Memória e Patrimônio Cultural; Livro e Leitura; Cidadania, Identidade e Diversidade Cultural; e o Fundo Global de Equalização (para projetos fora de alguma das áreas anteriores, ou que abarquem mais de uma área). Esses fundos setoriais seriam operados como o que já ocorre hoje no Fundo do Audiovisual, ou seja, um comitê gestor, formado pela classe artística, sociedade civil e representantes do Ministério.
Pelas novas regras para o Fundo Nacional de Cultura, de acordo com a proposta ministerial, o financiamento a projetos poderia se dar por meio de editais de seleção pública, por coprodução e por parcerias público-privadas, entre outros mecanismos. "Precisamos fortalecer o Ministério, é a única maneira de valorizar o dinheiro aplicado", defendeu o ministro.
O ministro quer ainda disponibilizar os projetos aprovados para escolas e bibliotecas públicas, "para tornar público o que vem de dinheiro público".
Loteria cultural e vale-cultura - A proposta abarca ainda a adoção de uma loteria federal da cultura, que já está sendo negociada com a Caixa Econômica, para aumentar a captação e ter condições de apoiar projetos a fundo perdido, e o vale-cultura - "para alimentar o espírito" -, que vai permitir descontos em eventos e estabelecimentos culturais, e seria distribuído pelas empresas a seus empregados, a exemplo do tíquete-alimentaçao, para financiar o consumo, não a produção.
Juca Ferreira também exaltou a necessidade da aprovação do primeiro Plano Nacional de Cultura e a proposta de emenda à Constituição nº 150, que amplia o orçamento da cultura. A proposta é vincular 2% do Orçamento da União à política cultural do país. Atualmente, a participação da Cultura no orçamento geral é de apenas 0,6%, muito longe do que recomenda a ONU (não menos de 1%) e ainda muito distante do que é praticado nos países desenvolvidos (mais de 2%). Embora com o orçamento baixo, de acordo com Juca Ferreira, o MinC tem uma das melhores execuções orçamentárias da Esplanada. "Estamos fazendo o dever de casa, temos dificuldades de atendimento da demanda e fragilidades, mas temos compromisso e a consciência de que a Cultura não é supérfluo".
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