Poesia da diáspora Negra
Documentário refaz os caminhos culturais das etnias africanas que deram origem, no Brasil, a manifestações como o maracatu e o congado
Há cinco anos, a cineasta Liloye Boubli embarcou na rota de um projeto que a “consome todos os dias”. A viagem – que já a conduziu a lugares geograficamente díspares, mas (na ancestralidade) irmanados, como África, Pernambuco e Minas Gerais –, entretanto, ainda não se materializou: por enquanto, a documentarista teve meios de alcançar a quarta parte do orçamento total (R$ 800 mil) previsto para o longa-metragem Festas dos reis negros.
Trilhando percursos culturais da África bantu (coabitada por centenas de grupos étnicos), a pretensão da realizadora não se embasará numa visão pessoal: “A partir de manifestações culturais como o maracatu e o congado, me envolvi na narrativa mítica dos brincantes, reis e devotos. A forma de remontarem essa história foi estabelecida, com prioridade, por eles –, e eu a sigo, para contá-la”, esclarece.
Festas dos reis negros – atualmente na fase de montagem e mixagem, antes de passar para 35mm – se subordina a ampla pesquisa de campo, que levou Liloye à viagem africana, há quase três anos. Na Angola embrionária de tradições brasileiras, a diretora esteve nas províncias de Malanje, Mbanza Congo e Soyo. “Por lá, empenhei uma sólida fonte de estudo. Contei com consultorias espontâneas de pesquisadores locais, etnolingüista de bantu, estive em museus de antropologia e absorvi a experiência do historiador Alberto da Costa e Silva (autor de A manilha e o limbambo e A enxada e a lança). Procurei material para me relacionar com os entrevistados, livre da ingenuidade de quem não conhece aquela história, porém dando espaço para que eventos fossem contados sob a ótica deles”, reforça.
Ciente da multiplicidade cultural, a diretora brinca: “Você precisa de três encarnações para desvendar o continente africano. A chegada da África à historiografia é algo recente: é como se, agora, começasse a ‘entrar na moda’. O desconhecimento das pessoas é amplo. Inclusive, o fato de falarmos em África já demonstra nossa ignorância: você tem a África bantu, a África iorubá, a islâmica, a subsaariana…” No filme, a delimitação virá sob o universo bantu, bem menos divulgado do que o referente à cultura iorubá revelada por Pierre Verger, por exemplo.
A imersão africana deu lastro ao entendimento dos costumes de escravos que reverberaram nas tradições do congado e do maracatu. O eixo do filme reflete, no presente, três tempos de história cultural: a Angola atual, com a coexistência de autoridades tradicionais e aquelas estabelecidas oficialmente (que respeitam as características da religião primitiva ainda estabelecida); o congado mineiro, cultuado em torno da igreja de Nossa Senhora do Rosário e pertinente ao legado do Brasil colonial, e o maracatu pernambucano, com a expressão contemporânea como vertente de cultura popular e cênica.
“O maracatu é uma dança e um ritmo que encerram a noção de rito. Com os primeiros registros no século 17, em Pernambuco, o maracatu tem origem histórica semelhante à manifestação colonial da festa de Coroação de Reis Congos. Naquele período, foi um rito dos negros que elegiam um rei que trazia ingerência sobre a população escrava, numa espécie de acordo de autoridade”, explica a produtora musical do filme, Deborah Dornellas, que, em 2001, defendeu na UnB a tese O maracatu e seus lugares. “Foi um espaço de negociação para que se forjasse uma sociedade, e que ainda é muito forte na vivência do congado”, completa Liloye Boubli.
Para além do artifício de mediação entre autoridades – traço operante ainda em Angola –, as manifestações seculares representadas no filme não devem se aprofundar nas implicações recentes, como a carga de preconceito às vezes enfrentada pelos congadeiros que legitimam uma manifestação negra derivada de Portugal e Angola. “No filme, não questiono esse sincretismo, nem ele é muito explorado. Vou trabalhar com religiosidade basicamente apenas na representação simbólica da calunga do maracatu: um elemento de ligação entre os continentes americano e africano”, adianta Liloye.
Apelo musical
Passada a atual “avalanche política”, a produção de Festas dos reis negros dará continuidade à travessia do “doloroso corredor da captação”. Previsto para ter 80 minutos de duração, o documentário tem co-produção angolana (além de parte de recursos viabilizados pela Eletrobrás e Chesf). Com previsão de chegar às telas em julho de 2007, a fita já tem 50 horas gravadas. A produção, iniciada em 2002, teve todas as seqüências pernambucanas (na Zona da Mata) feitas com suporte 16mm.
Fato incomum para um documentário, houve o cuidado técnico de capacitar o som para o padrão dolby, dada a importância do registro das toadas, letras e músicas. Conhecedor profundo do maracatu rural – “ritmo antropofágico e brasileiro”, como sublinha Deborah –, o músico Siba (da banda Mestre Ambrósio) foi um dos cicerones na passagem por Pernambuco. Com “gramática diferenciada”, porém, o maracatu nação deverá ser privilegiado no longa-metragem, pela maior ligação com a origem africana.
Fato incomum para um documentário, houve o cuidado técnico de capacitar o som para o padrão dolby, dada a importância do registro das toadas, letras e músicas. Conhecedor profundo do maracatu rural – “ritmo antropofágico e brasileiro”, como sublinha Deborah –, o músico Siba (da banda Mestre Ambrósio) foi um dos cicerones na passagem por Pernambuco. Com “gramática diferenciada”, porém, o maracatu nação deverá ser privilegiado no longa-metragem, pela maior ligação com a origem africana.
Além de trecho do poema de Ascenso Ferreira (Maracatu), cantado por Alceu Valença, Liloye se emociona com a possibilidade do uso de verso da música Pai grande (na voz de Milton Nascimento). “Aquela parte: ‘Pra onde eu vim?/ Não vou chorar/ Já não quero ir mais embora/ Minha gente é essa agora’, para mim, é uma das maiores traduções poéticas da diáspora negra”, conclui. (Fonte Correio Braziliense)
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