Nos dias em que retomamos as discussões sobre a ascendência negra de nossa gente (20 de novembro é o dia consagrado à consciência negra) e procuramos, ainda em atitudes tímidas, ressaltar a importância deste grupo étnico para a nossa conformação social, parece-me se fazer pertinente refletir sobre a abordagem que a literatura tem, ao longo dos anos, dado ao tema.
Desnecessário lembrar o poema “O navio negreiro: tragédia no mar” em que o eu lírico nos conduz ao depósito humano que navega em estado deplorável de higiene e respeito para a escravidão no Brasil. Castro Alves, em razão desta e outras publicações, ficaria conhecido como o poeta dos escravos. Muito embora sem tematizar declaradamente a condição de descendentes de escravos, Machado de Assis, Cruz e Sousa e Lima Barreto evidenciam-nos, em diferentes passagens e sob distintos prismas, a dor que a pele negra parece ter-lhes impingido.
Existem obras contemporâneas que, de maneira mais explícita, retomam a condição do negro no Brasil. Refiro-me a "Quarto de despejo", de Carolina Maria de Jesus, relato pungente de uma mulher negra que luta pela sobrevivência digna da família; o professor Fischer também incursiona pelo assunto em sua fluente novela "Quatro negros", que apresenta a menina Janéti, saída dos confins do pampa e, além de refletir sobre a condição negra da personagem, põe em discussão o modus vivendi da metade sul do estado. Há também um monumental romance escrito por Josué Montello que nos faz adentrar o universo da negritude de nossa gente. Trata-se de "Os tambores de São Luiz". A obra não é nova, mas o tema é apaixonante e a narrativa, ainda que densa, se desenvolve com emoção, ironia, sensualidade e esperança na raça humana.
O protagonista do romance, que se passa no Maranhão, é Damião, ainda menino, em fuga com a família. Seu pai, negro vindo da África, não aceita a escravidão e com amigos funda um quilombo no meio da mata. O jovem Damião acostuma-se à liberdade, aprende a ler e a escrever, recebe noções de cultura geral, interessa-se pela história do seu povo e da realidade que o circunda. O futuro de Damião, contudo, não estaria circunscrito à fazenda. Ele estaria destinado à alforria e entregue ao bispo de São Luiz. Convivendo na Cúria, recebendo ensinamentos de um padre mulato, torna-se o melhor aluno do seminário, mas sua ordenação como padre não acontece, afinal, ele era negro e quem, entre os tradicionais e conservadores senhores maranhenses, ousaria receber a comunhão pelas mãos de um padre negro?
Somos levados, a partir deste momento, a uma variedade de eventos que demonstram o encaminhamento da abolição da escravatura, ao mesmo tempo em que aumentam os castigos impostos aos escravos, os conflitos de rua, as fugas e a incansável obra de mulheres como Genoveva Pia que se dedicam a colaborar para que seus irmãos negros encontrem a liberdade.
"Os tambores de São Luiz" constitui, assim, uma obra em que o caráter social da literatura se faz presente, em que a literatura busca elementos da história para recompor parte de nosso passado, colocar-nos frente às nossas mazelas e levar-nos a refletir sobre elas. Ao final da narrativa percebemos que somos tão brasileiros como aquele homem negro que carregou galões de água como se fosse uma mula, que quase foi dilacerado pelas chibatadas recebidas no tronco, que enfrentou os preconceitos dos colegas de seminário, menos inteligentes, mas com pele branca. Ao encerrar-se a narração, não nos sentimos devedores do negro, mas parceiros de uma trajetória que conformou este povo de pele morena, o brasileiro. Indignamo-nos, porém, com esta capacidade que, independente da cor da pele, por vezes faz o homem sentir-se superior ao próprio homem e chamar a si atributos de julgamento que não lhe foram conferidos nem pela herança genética, nem pela herança financeira.
Apesar dos pesares, ainda vale a pena pensar, refletir e formar opinião. "Os tambores de São Luiz" é um daqueles momentos ímpares que nos possibilitam, além do deleite, revisar a nossa história pessoal como seres humanos e cidadãos.
Elaine dos Santos
Professora
Fonte: www.jornaldopovo.com.br edição de 22 e 23 de Novembro 2008
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