Cantada em verso e prosa, a nossa multiculturalidade, nossa miscigenação e nossa malemolência tupiniquim estão seriamente ameaçadas pela intolerância religiosa que, de norte a sul, está dominando o país.
Não é preciso ser um grande estudioso para saber que num ambiente de desespero e de pouca cultura florescem com mais tranquilidade teses fundamentalistas e visões religiosas que apelam ao místico para buscar respostas para os problemas cotidianos das pessoas. Assim, não são as pessoas que têm problemas, é o diabo que faz com que elas tenham.
Tire-se, pois, o diabo de suas vidas que tudo estará resolvido.Por malandragem, conveniência, má fé e desrespeito, convencionou- se nos meios pentecostais e neo-pentecostais que a melhor representação do diabo como inimigo a ser combatido está nos cultos de matriz africana, onde elementos como Exu, que no sincretismo religioso - que, tal como jabuticaba e dólar na cueca, é coisa que só dá no Brasil -, é identificado com a figura do demonio.
Portanto, onde grassa a ignorância, onde ninguém lê e se informa, até porque para entender o sincretismo é necessário o mínimo de estudo, o que se vê é, a cada dia, aumentar a necessidade de e combater o demônio, logo, combater as religiões de matriz africana.
Alguns anos atrás o bispo Van Helde, da Igreja Universal chutou uma imagem de santa na TV e isso virou um caso nacional.
No entanto, a mesma Igreja Universal, todos os dias, a todo instante, ataca as religiões de matriz africana e tudo fica por isso mesmo.Nas favelas cariocas pessoas que são ligadas ao candomblé e à umbanda estão sendo "convidadas" a se retirar por traficantes convertidos às igrejas evangélicas que, no entanto, continuam exercendo seu ofício, agora com as bençãos do Senhor, pois até mesmo cerimonias religiosas para traficantes estão sendo feitas nos morros por pessoas que se dizem pastores de igreja.
Não são poucos os casos onde babas e yalorixás têm sido expulsos, vítimas de violência física, mortos; terreiros atacadados e depredados, enfim, a intolerância religiosa faz parte do cardápio do dia.Um ano atrás a Polícia Militar em Minas invadiu, a partir de uma denúncia anônima que ali funcionava um cativeiro, oIlê Unzo Atim Nzaze Iya Omin, ofendeu religiosos, agrediu pessoas e o caso só nao caiu no esquecimento porque organizações do Movimento Negro e religiosas agiram acionando os órgãos públicos tomaram as medidas cabíveis que o caso exigia.
Agora, mais recentemente, vem de Belo Horizonte um novo caso de intolerância religiosa. Depois de quatro meses para abrir uma conta bancária, necessária para recimento de recursos de projetos sociais e manutenção da própria casa de terreiro, a Mame’tu Kitaloiá da Associação Religiosa Ilê Jacutá de Iansã, acompanhada da coordenadora nacional do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-brasileira (CENARAB), Makota Celinha, ouviram de um gerente da Caixa Econômica a seguinte argumentação para a não abertura da conta corrente: “O conselho da agência após analisar a solicitação indeferiu o pedido da Associação, oferecendo a mesma apenas a possibilidade de abertura de uma conta poupança”.
Indagado sobre o por quê disso, visto ser a Associação uma entidade registrada e inscrita no Conselho Nacional de Pessoas Jurídicas e se encontrar em dia com sua documentação e obrigações, a resposta dada foi a de que “assim como a senhora escolhe um banco para sua movimentação bancária, o banco escolhe o cliente com o qual deseja trabalhar. E neste caso a Caixa Econômica não se interessa por este tipo de cliente”.
Indagado ainda se a motivação para esta postura, era pelo fato da Associação se tratar de um candomblé, o gerente respondeu que “a Caixa Econômica se sentia no direito de ter o cliente que lhe interessava, e que se quiséssemos o Conselho havia definido pela Conta Poupança”.
Na semana passada, a Prefeitura de Salvador resolveu derrubar o terreiro Oyá Onipó Neto, que está há 28 anos instalado no mesmo lugar. Dada a repercussão do caso, o prefeito retirou a ordem mas o estrago já estava feito.
Grande parte do terreiro ruiu e com ele as imagens dos santos e os espaços sagrados do terreiro foram jogados destruídos.
O prefeito ainda tentou um acordo com a mãe-de-santo da casa, mas organizações importantes do Movimento Negro e religiosas entenderam que o que estava se vendo ali era um grave caso de intolerância religiosa e racismo institucional, portanto, nao caberia apenas a resolução do caso deste terreiro específico, mas, antes de tudo uma retratação pública e a garantia da prefeitura de que situações como essa não mais se repetirão.
Para que isso ocorra o ogan do Ilê Oxumarê e coordenador geral do Coletivo de Entidades Negras, Marcos Rezende, entrou em greve de fome com o apoio de sua organização, de várias organizações do Movimento Negro e dos terreiros religiosos.
Nos ultimos dias uma corrente de apoio e solidariedade tem se erguido de norte a sul do país a favor de uma resolução para o caso. No entanto, é visível a omissão de parlamentares, órgãos públicos (Seppir, por exemplo), grupos político-partidá rios, que simplesmente se calam, como se casos de intolerância religiosa não lhes dissessem respeito.O Brasil está vivendo um momento complicado no que tange às relações étnico-raciais.
No momento em que negros e negras passam a reivindicar espaços na educação formal, no mercado de trabalho, nos veículos de comunicação, na economia e nas esferas de poder, os racistas brasileiros e seus porta-vozes resolvem dizer que os negro é que estão querendo dividir o pais entre racistas e não racistas.
Ou seja, quando a vítima de racismo se rebela, é, ela mesma, taxada de racista por aqueles que a discriminam. Uma total esquizofrenia social que, tal como a jabuticaba.. .Enfim, o racismo a brasileira está na ordem do dia e com ele a intolerância religiosa. Atitudes urgentes precisam ser tomadas e não bastam apenas ficar nos discursos.
É necessário que o Estado brasileiro se posicione, que órgãos públicos legislativos, executivos e judiciários estejam atentos ao que está acontecendo. Pois chegará o momento em que as vítimas começarão e se revoltar e passarão a reagir. E quando isso acontecer talvez será muito tarde para buscar soluções que já deveriam ter sido implementadas há mais de cem anos.
( Fonte afropress.com.br)
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